7. O Coral da Cultura Inglesa ataca...
por Nestor de Hollanda Cavalcanti
Enquanto aguardávamos o dia da "performance" de Cobras e Lagartos no festival da Globo, o Coral da Cultura foi fazendo das suas, se apresentando em vários lugares.
Lembro-me dos espetáculos na Casa das Retortas, na USP e no MASP, em São Paulo, onde não estive presente; no Parque Lage, onde houve uma grande apresentação, tendo como fundo um pára-quedas aberto que fazia o papel de uma concha acústica; em Teresópolis, onde fazia um frio de rachar, o degas aqui estava lá agasalhado até a alma, tomando conhaque, junto com alguns cantores, na mamadeira de minha filha (Não que minha filha, ainda um bebê, entornasse um copo. Mas, é que levamos este socorro de casa para ajudar na temperatura do corpo. Aliás, o coro alugou um ônibus e todos fomos nele. Lembro-me do Marco Antonio, tenor, já vestido com a malha preta e calçado de sandália japonesa, me gozando, porque eu estava de manga comprida, camiseta, casaco, boné e cachecol. E quando íamos chegando a Teresópolis, ele, morrendo de frio, pedia socorro, pelo nosso socorro. Por sorte, eu levava um par de meias de lã e casaco adicionais. Foi o que o salvou, além da mamadeira, claro...). Estas apresentações eram sempre acompanhadas de enorme público e vários "tietes", fieis seguidores do coral, onde quer que ele estivesse.
No IV Panorama de Música Brasileira Atual, um festival anual de música erudita brasileira promovido pela Escola de Música da UFRJ, o coral foi convidado para interpretar três obras: Vidurbana, do Marcos e Paula; Beba Coca-Cola, de Gilberto Mendes e Décio Pignatari; e a sempre presente Cobras e Lagartos, peças que já faziam parte do repertório do coral.
Aproveitando a oportunidade que nos era oferecida, resolvemos aprontar um pouquinho, só um pouquinho. Então, na qualidade de diretor musical, cheguei para o Marcos, ex-aluno da escola como eu, e propus, indecentemente:
- Meu caro Marcos: a gente não pode se apresentar na Escola de Música sem aprontar um pouco, certo?
- Certíssimo - respondeu ele entusiasmado.
Assim, bolamos algumas "coisinhas" para acontecerem, de surpresa, com a participação de alguns cantores, digamos assim, "malucos", do coral.
No dia do espetáculo (29 de maio de 1981), o salão Leopoldo Miguez da Escola de Música estava abarrotado. Saía gente pelo ladrão. Professores, alunos e público em geral - muitos tietes do coral, estavam presentes. Havia, também, bastante curiosos, querendo conhecer a música que participaria do festival da Globo. A coisa começa. Vem Vidurbana, espetáculo músico-teatral que mexe com a público. O coral sai e o Marcos, sério, se dirige à platéia:
- Antes da próxima música, enquanto o coral se prepara, o tenor "Fulano de Tal" da classe da professora "Beltrana de tanto", vai apresentar uma ária do compositor "Sicrano".
Surge o Marco Antonio D¸Almeida e, com Marcos ao piano, canta parte de O Ébrio, de Vicente Celestino, com um grande portamento no final, fazendo, enfim, uma crítica explícita ao ensino de canto e que faz o público urrar de prazer.
Segue-se Beba Coca-Cola. Peça de difícil realização, mas, de ótimo efeito. O coro canta intervalos de sétimas maiores entre soprano e contralto e tenor e baixo. E, entre as vozes femininas e masculinas, um trítono. Fácil, não? O coro tirava tudo de letra. No meio da coisa, Henrique Wesley, barítono de sã loucura, arrota, despudoradamente, enquanto Cláudia Cardoso, soprano, grita histérica. O arroto faz parte da partitura original. Aliás, Henrique nunca falhou nos seus arrotos nesta música, em todas as apresentações do coral. Um cara-de-pau admirável!
O público se delicia, arrotando e gritando junto.
[Nas apresentações desta peça, em geral, no final, enquanto todo o coro gritava "Cloaca", seguindo rigorosamente a partitura do Gilberto, cinco moçoilas do coro (não me lembro de todas) avançavam e levantavam suas blusas acima das cabeças, cada uma com uma letra pregada na blusa, onde se podia ler a palavra cloaca. Com este singelo gesto, elas deixavam seus seios nus à mostra. Isto, um pequeno acréscimo ao trabalho de Gilberto Mendes feito pelo coral, não foi realizado na Escola de Música a pedido do organizador do evento, Ricardo Tacuchian. Ele temia as reações dos colegas mestres.]
Cobras e Lagartos, sempre muito discreta, tem, na sua forma, um espaço onde é possível uma... improvisação alucinada. Nelson Duriez, tenor - sempre ele, que na gravação da música já tinha marcado presença, em estado de total insanidade, avança encolerizado para o regente, gritando:
- Quatrocentos anos de tradição não podem acabar assim! Oitavas seguidas, quintas paralelas! O Pior é que nesta música a sensível nunca resolve na tônica!
O coral tenta deter o cantor alucinado. Ele quer matar o Marcos, que foge. (Depois, ele me confidenciou que ficou mesmo assustado com o Nelson.)
Acaba. O público delira. Clama por bis.
O coral agradece e apresenta o bis. Tudo programado anteriormente, só para aprontar um pouquinho. É Alguém cantando, de Caetano Veloso, marca registrada do coral, em arranjo do Marcos.
Detalhe: Caetano Veloso não de enquadraria num evento desses. Mas, quem é que quer saber deste tipo de coerência? No final, em vez de receber as costumeiras flores, Marcos Leite recebe no palco... uma galinha preta morta (Era de pano...) e agradece emocionado. O público, que não é galinha morta nem nada, delirou!
Havia alguns críticos de música presentes, mas, nada registraram. Naquele dia, num evento de música erudita, um coral - devidamente constituído, com seus sopranos, contraltos, tenores, barítonos e regência, apresentando obras de autores reconhecidamente eruditos, estava quebrando a "barreira do som", uma barreira que existe entre a chamada música clássica e a música popular.
E continuou quebrando as barreiras. Apresentavam arranjos de música popular com o mesmo entusiasmo com que cantavam obras escritas originalmente para o canto coral. O Aleluia do Murilo Santos ia junto com Lua, lua, lua do Caetano Veloso. Uma coisa atrás da outra, sem separação, fora as "gracinhas" constantes que nós bolávamos e que o próprio coro improvisava nos recitais.
Era uma festa, uma grande festa, as apresentações do Coral da Cultura Inglesa.
Rio, 28 de novembro de 2005
(in: Às voltas com o canto coral. Texto inédito, Rio de Janeiro, 2003-2005)
Volta (Índice) | Textos | Principal
|