5. Preliminares do festival: a gravação

por Nestor de Hollanda Cavalcanti

    Naturalmente, nos classificamos para o festival. Fui convocado para uma reunião com o produtor musical do evento para acertar os detalhes. Marcos foi junto. Não me lembro do nome dele, mas foi aí que fiquei sabendo da história da classificação das músicas no festival. Ele me disse que minha música tinha sido escolhida pelo jurados de seleção e que estava no "balaio", esperando os "acertos finais". O tal "balaio" continha cerca de trezentas músicas e os "acertos finais" incluíam os interessesdas gravadoras, comerciais, digamos assim, etc. e tal; principalmente etc. e tal. Afinal, "business is business!"
    Infelizmente, Cobras e Lagartos era uma solitária concorrente, pois não tinha gravadora. Neste instante, em que a música iria, necessariamente para o espaço sideral, o produtor recebeu um telefonema amigo e a música foi classificada. Depois, cada macaco no seu galho, isto é, cada música concorrente com sua gravadora. Aquelas que não tinham, se é que havia alguma que não tivesse, ficaram num pequeno bolo. Na hora do tal bolo ser repartido, a gravadora Ariola, ficou com a nossa fatia e o nosso produtor principal ficou sendo o Mazola, que colocou Alexandre Agra como produtor executivo. Tudo muito simples, não?
    Depois de tudo isso, veio um papo puramente técnico, ou seja, os detalhes sobre a apresentação. O produtor do festival começou com a seguinte pergunta:
    - Quem vai fazer o arranjo da música?
    Dei uma a resposta, inesperada para ele, pela cara que fez:
    - Eu vou fazer. E o que é que posso contar?
    Meio surpreso, respondeu:
    - Tudo bem. Conte com toda a orquestra da Globo; esta aí, conforme consta no regulamento. A orquestra descrita no regulamento contava com: 2 flautas, 2 clarinetas, 5 saxofones - sendo 2 altos, 2 tenores e 1 barítono, 2 trompas, 4 trompetes, 4 trombones, tímpanos, cordas completas e "cozinha" (piano, guitarra, baixo elétrico e bateria).
    - Fique à vontade para trabalhar, disse.
    - Posso usar toda orquestra?
    - Mas é claro. Fique à vontade.
    Tivemos, depois, uma reunião na Ariola com os produtores e eles ratificaram o que dissera o produtor do festival. Eu podia utilizar para o arranjo, os instrumentos que necessitasse.
    Não tive dúvidas. Fui para casa e comecei a trabalhar. Dispensei as flautas e clarinetas, utilizando o resto da orquestra. Fiz um introdução politonal e polirítmica em cima no acorde inicial da peça (acorde de sétima da dominante, o popular Ab7) com cerca de 30 segundos para toda orquestra e segui com um conjunto acompanhando o coro, composto de 3 saxofones (2 altos e 1 tenor), mais piano, baixo e bateria. A parte coral permaneceu intacta. A única coisa que fiz foi "vesti-la" com um conjunto. Ficou clara a explicação?
    Pronto o trabalho, entreguei a partitura e descansei no sétimo dia.
    Passados uns dias, bem mais que sete, o Alexandre Agra me telefona, bastante preocupado, dizendo que não poderia usar o arranjo na gravação, porque ficaria muito caro. A orquestra que teria de ser contratada, só tocaria por 30 segundos! Argumentei que havia perguntado à produção se poderia utilizar-me da orquestra toda e que a resposta tinha sido afirmativa. Argumentei antes de fazer o arranjo, bem antes. Ele replicou, dizendo que o arranjo seria usado, certamente, na apresentação ao vivo. Mas, na gravação, seria utilizado apenas um conjunto menor, para ficar mais barato. Eu, com aquela delicadeza que me é peculiar, filho de pernambucano e bisneto de calabrês, disse o seguinte:
    - Se não usar o meu arranjo na gravação, tiro a música do festival!
    Ele me respondeu que iria consultar o Mazola e que depois me telefonaria.
    A resposta foi que a música seria gravada com o arranjo original, sem problema algum. Nada como um bom argumento e seu conseqüente entendimento...
    No dia da gravação no estúdio da Transamérica - sim, porque a música foi toda gravada em um só dia - estávamos lá: Agra, Marcos e eu. Marcos assumiu a regência da orquestra (gravada em etapas, como de praxe), enquanto eu assistia a tudo do "aquário".
    A primeira etapa da gravação começou com as cordas (arregimentadas por Pascoal Perrota), por serem elas a base da introdução do arranjo. Isto conntrariava o habitual e o Agra, gente boa, protestou um bocado, dizendo o tempo todo que "primeiro se grava a cozinha", que "não se faz assim", que "não daria certo", etc. e tal e qual.
    Mas, as cordas gravaram primeiro. Tudo daria certo se não fosse o "drible" que elas nos deram. Um bom "drible" bem dado em duas partes.
    Vejamos as partes:
    Primeiro, fizeram uma "respiração" antes do acorde final, comum nas cordas, mas não prevista no arranjo. Nem eu e nem o Marcos reparamos na hora. E, nas outras etapas, quase matou o resto da orquestra para acertar o tempo, enlouquecendo a regência.
    Segundo, por iniciativa própria, gravaram a "dobra", ou seja, gravaram novamente a sua parte, obrigando a produção do disco a pagar também dobrado...
    O produtor não me via com olhos ternos. Parecia um pouco aborrecido...
    Respondi com um sorriso simples e um oferecimentos:
    - Quer uma balinha de hortelã?
    Depois, foram chegando o resto dos músicos da orquestra. Primeiro, a cozinha: Miguel Cidras no piano, Jorjão no baixo e Charles Chalegre na bateria. A seguir, Hélio Capucci, na guitarra; José Ribeiro, nos tímpanos; os sax (Netinho e Baianinho nos altos, Zé Bodega e Biju nos tenores e Aurino no barítono), os trompetes (Formiga e Maurílio, que gravaram duas partes cada), os trombones (Maciel e Manoel Araújo, que também gravaram duas partes cada) e as trompas (os irmãos Cândido, Luis e Antonio) e, por último, o coral.
    As palhetas, depois de gravarem sua parte, foram ouvir o resultado no "aquário". Acho que foram somente eles, se não me engano. O Netinho, depois de escutar o resultado, virou-se para mim e arriscou uma pergunta:
    - Foi você que escreveu isso?
    - Foi - respondi meio sem jeito.
    - Você é macaco velho nesta coisa, hein?
    Ele não disse exatamente isso. Acho que foi algo como "pauta velha" ou coisa que o valha.
    - É... - respondi mais sem jeito ainda, sob os olhares admirados do Agra e da gargalhada do Marcos. Ele sabia que era a primeira vez que eu escrevia para saxofone.
    Alguns coralistas assistiram às gravações instrumentais. Em parte por curiosidade; em parte para saber se eu faria um arranjo legal ou não. Na verdade, queriam é mesmo saber se eu sabia escrever para orquestra, conforme me confessaram depois. O fato é que quem estava presente por parte do coro gostou e aprovou, fazendo o meu cartaz diante dos demais. Minha mãe ficou orgulhosa!
    Veio a etapa final. A gravação da parte do coro. Esta foi tensa. O produtor procurava apressar-nos para economizar nos gastos. Marcos estava cansado. Mas, no final, tudo acabou dando certo.
    Impossível esquecer o Nelson Duriez, tenor, em seu solo na gravação:
    - Que se feda o gambá!
    A Virginia:
    - One, two, tree, four!
    E todo coro, com uma garra incrível!
    O Zequinha (José Carlos Barros), barítono, figura admirável que, passados vários anos, até hoje me diz que não entendeu a abertura orquestral de Cobras e Lagartos.
    Minha resposta tem sido a mesma há vários anos para ele:
    - Também não, Zequinha... Também não...

    Rio, 26 de novembro de 2005

    (in: Às voltas com o canto coral. Texto inédito, Rio de Janeiro, 2003-2005)

    Volta (Índice) | Textos | Principal